Orientações jurídicas sobre gagueira
17/04/2020
Orientações jurídicas sobre gagueira
José Roberto Guedes de Oliveira
Conselheiro Fiscal do Instituto Brasileiro de Fluência - IBF
O Instituto Brasileiro de Fluência - IBF disponibiliza orientações jurídicas a respeito da gagueira. As questões abaixo correspondem a uma síntese das dúvidas mais frequentemente recebidas.
NA FAMÍLIA
Pergunta: Sou mãe de um menino que gagueja. Moramos em uma cidade do interior e aqui não há fonoaudiólogo especializado no tratamento da gagueira. Haveria alguma forma de requisitar a inserção de um fonoaudiólogo especializado em gagueira no quadro de funcionários de saúde do município?
Resposta: Existem várias formas de resolver a questão. Uma delas, por exemplo, é a que mais tem solução em curto espaço de tempo.
O Executivo Municipal (Prefeito), nem sempre está atento aos problemas de suas secretarias. A Secretaria da Saúde, por exemplo, costuma estar sobrecarregada de atividades, como sempre podemos observar pelos jornais e TV.
No entanto, o caminho seria conversar com um vereador atuante e solicitar dele uma moção ou um requerimento ao Prefeito, explicando a necessidade e, com isso, determinar que se contrate um profissional especializado no assunto. Isto tem surtido muito efeito.
Contudo, quando for levar ao vereador este pedido, faço-o também por escrito, a fim de que não fique o falou por não falou. Faça com que a Secretaria da Câmara Municipal protocole o seu pedido: coisa simples, que pode ser feito à mão, até num papel de embrulhar pão. O que importa, acima de tudo, é o conteúdo e o alcance do pedido.
NA ESCOLA
Pergunta: Na minha escola, a única resposta admitida para a chamada é presente. Entretanto, muitas vezes não consigo responder a chamada a tempo. Já conversei com os professores e perguntei se eu poderia responder aqui (que é mais fácil para eu falar). Todos os professores se mostraram irredutíveis, dizendo que não podem me conceder este privilégio. O que fazer quando a conversa não basta?
Resposta: Nesse caso, quando o bom senso não impera do lado de quem mais deveria estar atento ao princípio da educação, há alguns procedimentos importantes, para a preservação do direito:
Um deles: Fazer uma carta explicativa do fato, direcionada à Direção da Escola, solicitando providências imediatas. Este documento deverá ser entregue na Secretaria da Escola, com uma cópia para devolução com o devido ciente do conteúdo, com a data e a assinatura de quem a recebeu (nome legível e número de prontuário funcional).
É um documento comprobatório para análise que, certamente, terá sucesso no âmbito da Secretaria de Educação do Município, na Secretaria de Educação do Estado e no Ministério da Educação (MEC).
Certamente, haverá um processo regular interno e o mesmo penderá para as alegações do portador da gagueira, por princípio constitucional.
Pergunta: Sendo uma pessoa que gagueja, sou obrigado a apresentar palestras e seminários na sala de aula? Existe alguma lei que obrigue o professor a propor outro tipo de avaliação para os alunos que gaguejam?
Resposta: Lembramos que a situação vexatória (constrangimento) de qualquer forma, é fato gravíssimo para a abertura de processo legal discriminatório. Portanto, o aluno não deverá aceitar esta imposição, de forma alguma. O Código Civil - um dos instrumentos legais para este caso, poderá ser invocado, em direito ao Dano Moral, diante da coação, pressão física ou moral exercida sobre alguém para obrigá-lo a praticar um ato contrário à sua vontade, principalmente em se tratando de uma disposição a evidenciar a gagueira. Se também não houver o bom senso neste caso, como, por exemplo, um outro aluno apresentar o trabalho, então deverá ser comunicado à Direção da Escola, com o mesmo procedimento descrito na questão anterior, ou seja, enviando carta explicativa.
Em educação, sabemos, há inúmeras formas de avaliação do trabalho, não sendo a apresentação oral a forma única, principalmente levando-se em conta a questão da gagueira.
Pergunta: Durante a infância, sofri uma série de humilhações na escola em que estudava. Agora, na idade adulta, tenho direito de processar a escola? Em caso positivo, quais são as provas que devo apresentar para abrir um processo?
Resposta: Decorrido o tempo, fica muito difícil abrir, agora, um processo. Há prescrição e decadência. Há uma certa confusão quanto ao que é uma e o que é a outra.
Eis, aqui, o que nos diz a Drª Rosana Madjarof, a respeito disso:
É comum às pessoas confundirem os termos prescrição e decadência. Portanto, tentarei explicitar sucintamente esses dois termos jurídicos.
Prescrição é a extinção de uma ação judicial possível, em virtude da inércia de seu titular por um certo lapso de tempo e a Decadência é a extinção do direito pela inércia de seu titular, quando sua eficácia foi, de origem, subordinada à condição de seu exercício dentro de um prazo prefixado, e este se esgotou sem que esse exercício tivesse se verificado.
Posto que a inércia e o tempo sejam elementos comuns à decadência e à prescrição, diferem, contudo, relativamente ao seu objetivo e momento de atuação, por isso que, na decadência, a inércia diz respeito ao exercício do direito e o tempo opera os seus efeitos desde o nascimento deste, ao passo que, na prescrição, a inércia diz respeito ao exercício da ação e o tempo opera os seus efeitos desde o nascimento desta, que, em regra, é posterior ao nascimento do direito por ela protegido.
Baseando-se na estabilidade que a ordem jurídica deve assegurar às relações jurídicas, é intuitivo que o tempo é o principal elemento da prescrição.
São variados os prazos da prescrição, segundo a importância do caso, a facilidade do exercício da ação etc. Vai de dez dias a cinco anos, como se vê no artigo 178 do Antigo Código Civil; e aos casos, para os quais não há prazo previsto, aplica-se a regra geral do art. 177 do mesmo Código.
Questão interessante, ainda relativa ao tempo, é saber-se quando começa a correr o prazo da prescrição. A explicação mais lógica decorre da regra segundo a qual a prescrição atuando, como atua, na ação, começa a correr do dia em que a ação poderia ser proposta e não o foi. É o princípio da actio nata, ou seja, a prescrição começa do dia em que nasce a ação ajuizável.
Enquanto a prescrição é suscetível de ser interrompida e não corre contra determinadas pessoas, os prazos de decadência fluem inexoravelmente contra quem quer que seja, não se suspendendo, nem admitindo interrupção.
É importante notar a regra do art. 177 do Antigo Código Civil. Ali, o legislador estabeleceu os prazos genéricos da prescrição, dispondo que as ações pessoais prescrevem, ordinariamente, em vinte anos, e as ações reais em dez anos entre presentes, e em quinze anos entre ausentes.
Portanto, podemos fazer as diferenças entre Prescrição e Decadência da seguinte forma: a) A decadência tem por efeito extinguir o direito, e a prescrição extinguir a ação; b) A decadência não se suspende, nem se interrompe, e só é impedida pelo exercício do direito a ela sujeito; a prescrição pode ser suspensa ou interrompida por causas preclusivas previstas em lei; c) A decadência corre contra todos, não prevalecendo contra ela as isenções criadas pela lei a favor de certas pessoas; a prescrição não corre contra todos, havendo pessoas que por consideração de ordem especial da lei, ficam isentas de seus efeitos; d) A decadência resultante de prazo extintivo imposto pela lei não pode ser renunciada pelas partes, nem depois de consumada; a prescrição, depois de consumada, pode ser renunciada pelo prescribente; e) A decadência decorrente de prazo legal prefixado pelo legislador pode ser conhecida pelo juiz, de seu ofício, independentemente de alegação das partes; a prescrição das ações patrimoniais não pode ser, ex officio, decretada pelo juiz.
Com isso, a decadência e a prescrição estão presentes na sua argumentação do fato ocorrido na infância. O bom tom exige deixar isto tudo de lado, olhando para frente, para não “abrir feridas”. Mas é bom que a escola tome conhecimento de que poderia ser punida pelo que fez, a fim de não repetirem mais com novos alunos. Isto, de levar ao conhecimento da escola de que poderia abrir um processo, é uma questão de foro íntimo.
Pergunta: Desejei prestar o vestibular para Fonoaudiologia e não fui aprovado no teste de aptidão por apresentar gagueira. Este é um procedimento legal ou é discriminação?
Resposta: Discriminação. Há necessidade de uma representação contra a instituição, manifestando a indignação pelo fato e exigindo a retratação. Caso isto não ocorra, então deverá dirigir-se ao MEC, expondo a gravidade do caso e pedindo medidas punitivas. Muitas vezes, até o descredenciamento ocorre.
Contudo, é necessário fundamentos do ocorrido. Testemunhas, cópia das questões do teste, as respostas obtidas, inclusive cópia desse teste de aptidão. É preciso analisar estes documentos para ver o que fizeram.
NO TRABALHO
Pergunta: A gagueira pode ser considerada deficiência ao prestar um concurso?
Resposta: A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) da Organização Mundial da Saúde (OMS) considera a gagueira como uma deficiência da fluência da fala (código b3300). A versão em inglês da CIF foi publicada em 2001 e a versão em português em 2003.
O decreto brasileiro que define quem é portador de deficiência foi publicado em 1999 (decreto nº 3.298/99), não contemplando, portanto, as orientações da Organização Mundial da Saúde, pois é anterior a elas. O decreto dispõe:
Art. 4º. É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias:
I - deficiência física - alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;
II - deficiência auditiva - perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz;
III - deficiência visual - cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60º; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores;
IV - deficiência mental - funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:
a) comunicação;
b) cuidado pessoal;
c) habilidades sociais;
d) utilização dos recursos da comunidade;
e) saúde e segurança;
f) habilidades acadêmicas;
g) lazer; e
h) trabalho.
V - deficiência múltipla - associação de duas ou mais deficiências.
Portanto, a gagueira é considerada deficiência pela CIF, mas não pela legislação brasileira. Desta forma, para efeitos legais, a gagueira não pode ser considerada como deficiência ao se prestar um concurso.
Pergunta: Posso me inscrever na vaga de deficiente?
Resposta; Conforme exposto acima, não há qualquer possibilidade de inscrição em vaga de deficiente, pela simples razão de não estar inserido no artigo 4º do decreto nº 3.298/99. Obviamente, terá a sua inscrição recusada.
Pergunta: Se presto um concurso e assino uma declaração como não tendo nenhuma doença ou deficiência, posso ser punido/demitido por ter gagueira?
Resposta: Deverá se inscrever em concurso como pessoa normal, assinando declaração de não possuir qualquer tipo de deficiência. Tomar-se-á posse e início de trabalho como concursado. Se a qualquer tempo, após a posse, houver algum tipo de discriminação, punição, demissão ou outra qualquer penalidade pela razão de ser portador da gagueira, então é um fato novo, dentro do ordenamento jurídico, que punirá o infrator e haverá um processo regular. Nota-se, entretanto, que isto já é da esfera geral das discriminações elencadas na Constituição Federal.
Pergunta: As instituições militares (Exército, Marinha e Aeronáutica) aceitam pessoas com gagueira para serviço e/ou carreira militar?
Resposta: Em princípio, não é para discriminar ninguém. Contudo, a seleção é muito rigorosa nas instituições militares, principalmente na graduação (hierarquia militar). Condições como baixa estatura, massa corporal acima da média, certo grau de perda visual/auditiva e pouco condicionamento físico são suficientes para a exclusão de um candidato. A seleção busca excluir candidatos que não estejam minimamente preparados para o serviço militar. Portanto, no caso da gagueira, a banca selecionadora poderá recusar o candidato caso compreenda que o distúrbio na fluência da fala interferirá de forma negativa no desempenho militar.
Assim sendo, não há como reclamar, já que a justificativa é que não passou no teste de seleção. A título de conhecimento, há instituições militares que, no preenchimento de um questionário prévio, lançam uma pergunta simples: Você é filho de militar: Sim ou Não.
Porém, se houver uma comprovação testemunhal de uma discriminação qualquer, dentro das Forças Armadas, o Código Penal Militar é rigoroso em apurar o fato.
Pergunta: Faço parte do setor de Recursos Humanos de uma empresa. Recentemente concluímos uma seleção para um cargo que exigia comunicação verbal fluente e um dos candidatos era uma pessoa com gagueira. Entendemos que o fato de apresentar gagueira, fazia com que o candidato não apresentasse um pré-requisito essencial para o cargo pleiteado. Decidimos por desclassificá-lo, mas não falamos explicitamente o motivo. Isso pode ser considerado discriminação?
Resposta: Não expor ao candidato o problema é falta grave. Deveria, sim, explicar a ele a razão pela qual não foi aceita a sua admissão ao cargo pleiteado. Mas isto não significa discriminação. Dou exemplo: não há como aceitar uma pessoa idosa para o cargo de bombeiro. Há limite de idade para tal.
Portanto, o próprio candidato deve estar ciente do requisito essencial para o exercício do trabalho, ou seja, comunicação verbal fluente. Na própria chamada para prováveis candidatos ao cargo, há a característica de fala e expressão fluente. Isto já basta para que o requisito tenha validade.
NO TRATAMENTO
Pergunta: Legalmente, como podemos nos defender contra profissionais mal qualificados para o diagnóstico e o tratamento da gagueira? Que tipo de provas devemos apresentar para poder abrir um processo de danos morais e materiais?
Resposta: Neste caso, há dispositivos legais bem atuais e que estão bem em evidência. A título de esclarecimento:
O erro do profissional de saúde pode ser classificado em:
a) Negligência: refere-se ao descuido, menosprezo e falta de atenção do profissional na execução de algum procedimento. Exemplos: fazer a avaliação e/ou o tratamento do paciente sem o devido cuidado, estando ciente de como deveria fazê-lo.
b) Imprudência: refere-se à falta de ponderação e cautela do profissional na execução de algum procedimento. Exemplos: não explicar claramente ao paciente sobre seu(s) diagnóstico(s) e/ou sobre os procedimentos terapêuticos que serão adotados.
c) Imperícia: refere-se à falta de competência do profissional na execução de algum procedimento. Exemplos: diagnosticar e/ou tratar casos de gagueira sem apresentar a devida competência.
A gravidade dos danos é muito variada. Alguns são leves, outros são trágicos; alguns são reversíveis, enquanto outros são irreversíveis. Constatado o dano, o paciente deve:
1) Em um primeiro momento, fazer um boletim de ocorrência em uma delegacia;
2) Em seguida, fazer uma denúncia no respectivo Conselho Profissional do seu Estado (Conselho Regional de Medicina, Conselho Regional de Fonoaudiologia, Conselho Regional de Psicologia e assim por diante).
3) Se o caso for realmente grave, o paciente pode abrir um processo na Justiça com pedido de indenização. Neste caso, é necessário contratar um advogado. O profissional será julgado por imprudência, imperícia e/ou negligência; quando ocorre lesão ou morte, o profissional responde pelo crime de lesão corporal ou homicídio culposo.
O paciente que conseguir provar o prejuízo (moral e/ou material) terá direito à indenização. A indenização por danos morais refere-se à compensação de algum sofrimento, enquanto que a indenização por danos materiais refere-se a perdas financeiras.
A comprovação do erro pode ser feita através de:
- Prontuário: como o prontuário é um documento do paciente, o profissional deve permitir o acesso do paciente a ele. O paciente deve tirar uma cópia do prontuário tendo em vista que ele contém todo o histórico de atendimento. Uma análise minuciosa pode revelar as causas do erro.
- Segunda opinião: solicite a um outro profissional que avalie a sua queixa de dano moral e/ou material. Alguns profissionais preferem não se pronunciar nesses casos alegando falta ética.
Resposta baseada em: Rodrigo de Moraes - Como se defender do erro médico