Sobre a fluência da fala
23/03/2020
Sobre a fluência da fala
Sandra Merlo
Fonoaudióloga
Instituto Brasileiro de Fluência - IBF
O que a fluência tem a ver com andar, dirigir, concentrar-se e fazer cálculos? São todos exemplos de habilidades. A fluência também é uma habilidade, mas de um domínio muito específico: a linguagem. As habilidades apresentam duas características típicas:
• São adquiridas pouco a pouco. Não é possível adquirir uma habilidade de uma hora para outra. É necessário praticar. E isso requer tempo. No caso específico da fluência, quer dizer que, para ser fluente, é necessário falar fluentemente muitas vezes. Desta forma, é possível compreender por que a fluência tende a se aprimorar com o passar do tempo, conforme a pessoa pratica: porque a habilidade é gradativamente reforçada.
• As habilidades tendem a ser pouco flexíveis, ou seja, aprender uma determinada habilidade geralmente não facilita a aprendizagem de outra habilidade. No caso específico da fluência, quer dizer que ser fluente em uma conversação face a face não implica necessariamente ser fluente em conversações ao telefone ou em apresentações em público. Desta forma, é possível compreender por que algumas pessoas se queixam da dificuldade em ser fluente em algumas situações e não em outras. Apesar de haver semelhanças entre a fluência de diversas situações de fala, existem também diferenças, as quais precisam ser aprendidas caso a pessoa deseje um maior grau de fluência em uma determinada situação.
De forma geral, o desenvolvimento da habilidade de fluência implica o desenvolvimento de mecanismos de processamento automáticos e pouco conscientes. Isso quer dizer que quanto mais a pessoa for fluente, menos atenção precisa voltar à fala. A fluência simplesmente acontece, sem que a pessoa saiba explicar exatamente por que ou como consegue.
A fluência apresenta vários componentes. Assim, para avaliar a fluência de uma pessoa é necessário observar diversos aspectos de sua fala.
Hesitações ou disfluências
Antigamente, a hesitação/disfluência era vista como um erro ou defeito de fala. Hoje em dia, não é mais vista desta forma, porque sabe-se que a hesitação/disfluência fornece tempo para o falante resolver dificuldades momentâneas relacionadas ao o que falar ou ao como falar algo. As hesitações/disfluências estão presentes na fala de todos os falantes, não existindo falantes que jamais hesitem ou que jamais sejam disfluentes. Entretanto, as situações de fala decorada ou leitura ensaiada tendem a fazer com que as hesitações/disfluências diminuam muito devido ao amplo conhecimento do texto. Os falantes considerados fluentes apresentam uma baixa quantidade de hesitações/disfluências. As hesitações/disfluências são consideradas de dois tipos:
- A hesitação/disfluência comum está presente na fala de todos os falantes. São as pausas silenciosas hesitativas, as pausas preenchidas (éh, ãh, mm), os prolongamentos finais, as repetições de palavras e os falsos inícios. Em falantes normalmente fluentes, as hesitações comuns chegam a, no máximo, 10% do texto.
- A hesitação/disfluência gaguejada está presente mais tipicamente na fala de pessoas com gagueira, embora ocasionalmente possam ser observadas em falantes que não gaguejam. São as repetições de sons e de sílabas, os prolongamentos iniciais e os bloqueios. Em falantes normalmente fluentes, as hesitações gaguejadas chegam a, no máximo, 2% do texto.
Reformulações
As reformulações sinalizam trechos considerados inadequados pelo falante e/ou pelo ouvinte e que são reparados. Às vezes, é possível verificar a presença de marcadores de reformulação, tais como: ou melhor, na verdade ou quer dizer. As reformulações envolvem as repetições, as paráfrases e as correções. Os falantes considerados fluentes apresentam uma baixa quantidade de reformulações.
Pausas silenciosas fluentes
Ao contrário das pausas silenciosas hesitativas, as pausas silenciosas fluentes tendem a ocorrer em fronteiras sintáticas fortes (entre orações ou sintagmas); também ocorrem diferenças significativas na freqüência vocal antes e depois da pausa.
Ao contrário do que se pensa, as pausas silenciosas fluentes não ocorrem apenas para que a pessoa possa respirar. As pausas servem para demarcar significados, sendo colocadas em lugares lingüisticamente relevantes (entre orações ou sintagmas). Entretanto, ao fazer a pausa, o falante também pode aproveitar para inspirar.
Na fala de pessoas sem distúrbios de comunicação, 70% das pausas silenciosas são fluentes, enquanto que os demais 30% são pausas silenciosas hesitativas. Sabe-se que pessoas que fazem pausas em fronteiras sintáticas fortes com maior freqüência tendem a apresentar um menor número de hesitações/disfluências na fala.
Os falantes considerados fluentes apresentam pausas em quantidade, duração e distribuição adequadas.
Taxa de articulação (velocidade de fala)
A taxa de articulação refere-se à percepção do quanto uma pessoa fala lento, médio ou rápido. É importante ressaltar que os valores das taxas de articulação variam de acordo com a comunidade sociolingüística em que se vive. Assim, uma taxa considerada média em uma comunidade pode ser considerada baixa/elevada em outra. No Brasil, por exemplo, a taxa de elocução média em Minas Gerais é considerada elevada na Bahia.
Os falantes considerados fluentes apresentam taxas de elocução confortáveis, as quais não são nem muito lentas e nem muito rápidas.
Suavidade ou facilidade de emissão
A suavidade ou facilidade de emissão refere-se ao esforço empregado durante a fala. Fisicamente, o esforço está relacionado à pressão abaixo da laringe, à tensão laríngea e à pressão de língua. Os falantes considerados fluentes apresentam pouco esforço físico durante a fala.
Habilidade gramatical
A habilidade gramatical refere-se à facilidade do falante para aplicar as regras de formação e de combinação de palavras durante a fala espontânea. Trechos de fala que apresentam ausências de artigos, preposições ou conjunções, por exemplo, são considerados trechos menos fluentes, porque evidenciam rupturas na construção gramatical do enunciado. Os falantes considerados fluentes apresentam boas habilidades gramaticais.
Complexidade semântica
A complexidade semântica está relacionada aos conceitos expressos durante a fala. Por exemplo, a utilização de palavras pouco freqüentes, o baixo uso de palavras ou expressões esvaziadas de significado (exemplos: coisa, negócio, tipo assim e né?), o maior número de conceitos e a adequada coesão lógica entre os conceitos são todos fatores que interferem no julgamento de quanto a fala é complexa em termos de significado. Os falantes considerados fluentes tendem a apresentar falas com complexidade média e elevada.
Referência bibliográfica:
MERLO, Sandra. (2006). Hesitações na fala semi-espontânea: análise por séries temporais. Dissertação de mestrado, Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Download: http://cutter.unicamp.br/document/?code=vtls000381660