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PESQUISE  

Linguagem, cognição e gagueira

Dois rapazes conversando animadamente.
23/03/2020

Linguagem, cognição e gagueira

Ana Flávia Lopes Magela Gerhardt
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Os que se debruçam sobre a problemática da gagueira e os fenômenos a ela relacionados deparam-se com um processo que pode ser observado de variados pontos de vista. Esta situação pode tornar a gagueira um obstáculo aos estudos que pretendem descobrir para ela uma causa, uma origem, um ponto de partida ou localização de onde se poderiam observar as outras forças influenciadoras da linguagem gaga, para bem além de uma mera opção metodológica: uma verdadeira gênese para a gagueira.

Mas a multifatorialidade da gagueira também pode ser considerada uma evidência da complexidade de toda condição humana, a qual não envolve somente aspectos biológicos e genéticos - estes, em princípio, mais facilmente mensuráveis pelos sofisticados aparelhos que o desenvolvimento tecnológico atual nos disponibiliza. Envolve também aspectos relacionados ao comportamento e a uma psique humana a um só tempo individual e coletiva, numa articulação que obstrui consideravelmente os movimentos em direção à causa única para o sofrimento de quem gagueja, frustrando assim os seus advogados e, por que não dizer, muitas pessoas que gaguejam e anseiam por uma cura para o seu mal.

O caráter multifatorial da gagueira, no sentido posto acima, provoca as dificuldades inerentes às escolhas epistemológicas tradicionais do pensamento ocidental, como se observa em trabalhos de críticos do objetivismo como Hilary Putnam e Boaventura Santos: a abordagem fundacional para os fenômenos que envolvem as experiências humanas, a gagueira entre elas, não impede que elas continuem a existir e acontecer, independente das nossas suposições acerca da sua origem ou motivação. Dessa forma, a complexidade da gagueira, longe de ser um impedimento à sua visualização, precisa se tornar um convite ao seu conhecer, à sua compreensão como objeto de estudo - enfim, à descoberta das perguntas, num tempo em que quase todos desejam resultados, respostas, como bem já disse o escritor José Saramago.

A reflexão sobre a gagueira como campo pleno de potenciais de aprendizagem sobre o ser humano é o que me leva, como sócio-cognitivista, à ousadia de buscar mais uma perspectiva de análise para este fascinante fenômeno, que ainda está por ser completamente perscrutado. Mas, ao incluir o universo da sócio-cognição entre os horizontes de onde se pode compreender a gagueira, não tenciono com isso tornar mais complicada ainda a sua situação como foco de pesquisa, nem colocar em posição desconfortável os seus estudiosos, já muito pressionados, de um lado, por predisposições científicas que antes de tudo lhes cobram resultados, e, de outro, pela urgência de trazer, se não a cura, um lenitivo para a angústia daqueles cuja fala gaga lhes poda a existência em muitos sentidos. Ajo com a compreensão de que só a iniciativa de conhecer a gagueira em toda a sua complexidade e sofisticação é que poderá abrir caminhos para atender às necessidades das pessoas que gaguejam e dos cientistas, não no tempo que o mundo demanda, mas no tempo em que as descobertas puderem emergir.

Levando em conta tais reflexões, construo minha fala a partir das visões de linguagem e de sócio-cognição que acredito serem interessantes para uma formulação da gagueira como, a um só tempo, provocadora e manifestadora de fenômenos sócio-cognitivos. Essa construção vem com a postura absolutamente isenta da suposição de definir como funciona a cognição da pessoa que gagueja: ora, ainda se tenta compreender a cognição dos que não gaguejam, que se dirá então das pretensões de descobrir como trabalha cognitivamente a pessoa que gagueja, e como a ciência da cognição pode atuar articuladamente a outras ciências que investigam o ser humano, principalmente a neurofisiologia e a neuroanatomia, aliás numa ação que está ainda nos seus primórdios sobretudo em relação à fala fluente.

Para tanto, defino a linguagem do lugar epistemológico que a identifica não como uma estrutura, atribuição corrente das pressuposições autonomistas-gerativistas da Lingüística, mas como semiose, ao lado de e interligada a muitas outras formas de construção de significado de que o ser humano é capaz. Tomando-se a gagueira como semiose, isto é, como forma de construção de significados, permite-se que seus aspectos revelem nossa capacidade de operar sócio-cognitivamente, isto é, de conceptualizar o mundo de acordo com os contratos de fala e de interação que vamos construindo com nossos semelhantes, vendo-nos como iguais a eles, e, ao mesmo tempo, como diferentes deles - e dessa paradoxal condição (inerentemente humana, é preciso dizer), emergem nossas ações de significado.

Levando isso em conta, é possível observar que a nossa forma de lidar com o paradoxo sócio-cognitivo nas interações com as pessoas é a de estabelecermos com elas uma relação de mesclagem conceptual, que resulta na formação das imagens que fazemos das outras pessoas bem como de nós mesmos, sendo que nessas duas imagens estão mescladas expectativas, juízos pré-estabelecidos e hipóteses especulativas acerca do que nós pensamos sobre nós mesmos e sobre os outros, e do que os outros pensam sobre nós. Tal investigação se possibilita porque, numa abordagem sócio-cognitiva, os elementos psicológicos e comportamentais presentes na mente da pessoa que gagueja em interação com seus semelhantes transformam-se em componentes do processo de mesclagem conceptual (já que são conceitos), o que os torna manipuláveis e discrimináveis qualitativamente, não apenas para efeito de pesquisa, como também para auto-conhecimento da pessoa que gagueja: num plano, os fatos em sua ontologia; noutro plano, as condições epistêmicas para sua validação.

Nota-se claramente o salto qualitativo que a pessoa que gagueja opera na busca da compreensão de si mesma, quando percebe que está fazendo equivaler conceitos que poderiam perfeitamente ser diferenciados, como, por exemplo, a identidade da pessoa como alguém que gagueja, e a qualidade de sua fala bem como do conteúdo do seu discurso, aspectos facilmente atreláveis na mente da pessoa que gagueja - e também na de muitos que não gaguejam, é preciso dizer. Para a pessoa que gagueja, o atrelamento inevitável entre a condição de ser gago e de portar uma fala ruim, de má qualidade, é o que lhe provoca o sentimento que o neurofisiólogo Per Alm nomeia como helpless: nada lhe pertence, nem a fala, nem a linguagem, tampouco os significados; nada nela se salva.

O reconhecimento, por parte da pessoa que gagueja, do seu real lugar de interlocutora, e dos diferentes planos em que se situam a sua identidade e a qualidade semântica da sua fala, permite-lhe pensar sobre sua própria condição, e de apropriar-se, por via indireta que seja, de ações que, aparentemente involuntárias, podem ser reconhecidas e administradas no nível que se denomina hoje gagueira encoberta, no entender de Sheenan, 1970, que é o conjunto de ações elaboradas e executadas pela pessoa que gagueja para tentar de alguma forma disfarçar às outras pessoas sua própria gagueira - ações inequivocamente de base sócio-cognitiva, de construção individual a partir das reações que a pessoa julga provocar sobre os outros que a ouvem gaguejar. Hoje se tende a considerar a gagueira encoberta um elemento do processo tão importante quanto as repetições, prolongamentos e bloqueios que constituem a ponta do iceberg da problemática da gagueira, daí ela merecer um trato todo especial na terapia de fala, bem como uma heurística de pesquisa que faça jus à sua importância: trafegando pela via encoberta do processo, a pessoa que gagueja pode colher ganhos preciosos para o seu tratamento fonoaudiológico e a sua qualidade de vida.

A investigação pormenorizada do que ocorre quando uma pessoa que gagueja sócio-cogniza pode ajudar aos profissionais e pesquisadores a refletir sobre como a sua mente se articula ao seu comportamento perceptível - os momentos em que se sente mais tensa e cobrada, relativamente às situações em que está mais relaxada e despreocupada, e em como tais sentimentos influem na qualidade da sua fala. Mas, sobretudo, essa consciência traz à pessoa que gagueja a possibilidade de reconhecer nitidamente, nos momentos de interação, os aspectos que são inerentes à sua pessoa, e talvez portanto ela não possa mudar, em confronto com alguns outros que podem ser devidamente compreendidos, amadurecidos e transformados, num processo de demarcação e visualização progressiva de cada um deles, e de como eles funcionam para que ela afirme seu espaço e sua identidade diante das outras pessoas.

Em suma, minha fala sobre os aspectos sócio-cognitivos potencialmente relacionáveis à gagueira toma como pano de fundo dois pontos primordiais, citados acima: o paradoxo sócio-cognitivo e a mesclagem de sujeitos, fatos diretamente relacionados à propriedade eminentemente humana de ver-se no outro e a ele comparar-se, nas intenções, sobretudo, mas também nos sentimentos, aprendizados e valores. A reboque, vem junto a possibilidade de verificar quais disciplinas relacionadas ao comportamento humano podem contribuir para conhecer a faceta encoberta da gagueira, aliás uma faceta que talvez esteja ao alcance da pessoa que gagueja, mais do que as ações involuntárias da gagueira aberta. Para ela, conhecer os mecanismos da própria gagueira encoberta, trazendo-a à luz, é uma conquista metacognitiva, ou seja, é um aprendizado indireto da sua própria condição através das estratégias particulares que ela criou para disfarçá-las (nem sempre com sucesso, evidentemente).

Devo lembrar novamente que o trato sócio-cognitivo quanto às questões de gagueira, em confronto com o que ainda há a descobrir acerca desta condição humana bem como da pessoa que gagueja, ainda está diante muitos horizontes a desbravar. Mas, para mim como pessoa que gagueja, e como pesquisadora que busca libertar-se das causas únicas, das dicotomias e das camisas-de-força impostas pelas ciências que não buscam perguntas, a experiência do não-saber diante de profissionais especialistas em fala e fluência não se apresenta como algo assustador ou paralisante. Antes, é um convite ao diálogo, ao aprendizado e ao auto-conhecimento, os quais, para o sócio-cognitivista, só de fazem em ação e atenção conjunta, de forma generosa, e em torno de um objetivo comum - descobrir quem é a pessoa que gagueja, e, em última instância, quem somos nós, verdadeiramente.

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