Logotipo Instituto Brasileiro de Fluência - IBF
IBF - FacebookIBF - TwitterIBF - Youtube

PESQUISE  

Filme oferece ao público uma representação realista e madura da gagueira

24/03/2020

Filme oferece ao público uma representação realista e madura da gagueira

O Discurso do Rei, premiado filme sobre o reinado de George VI, retrata a gagueira de forma madura e realista e inaugura uma nova era na percepção pública do distúrbio. O drama, indicado a 12 estatuetas no Oscar, oferece pela primeira vez ao grande público a oportunidade de realmente ter empatia e entender o que se passa com uma pessoa que gagueja.

Por Hugo Silva *

A incerteza da fala

Falar em público é um item que geralmente aparece nas primeiras posições quando se elaboram rankings sobre coisas estressantes na vida, acima até mesmo de divórcio, morte ou endividamento. Mas há na cena de abertura do filme “O Discurso do Rei” uma expressão no rosto do protagonista que vai além de qualquer definição usual do medo de palco que normalmente nos aflige quando temos que falar em público.

Enquanto o homem que um dia se tornará Rei George VI prepara-se para fazer um breve pronunciamento protocolar em uma cerimônia, sua fisionomia sugere que há algo maior do que apenas a atenção da plateia causando-lhe incômodo e preocupação. A razão do incômodo logo se esclarece: nosso protagonista tem gagueira persistente e precisa enfrentar o tempo todo um inimigo invisível que, a qualquer momento, pode investir impiedosamente contra sua fala e paralisá-la com bloqueios involuntários.

Colin Firth, que no filme interpreta “Bertie”, apelido familiar do segundo filho do Rei George V da Grã-Bretanha, captura com maestria todo o pavor carregado de adrenalina de uma pessoa que gagueja no momento em que se vê obrigada a falar em público – quando a própria fala é para ela uma coisa totalmente incerta. Qualquer pessoa habituada a conviver com os empecilhos e aflições da gagueira pode reconhecer muito bem os sintomas corporais tão bem encenados pelo ator: a face consternada, o andar de quem está prestes a desmaiar, a aceitação passiva da morte nos olhos.

A extrema solidão de quem gagueja

Gagueira_Extrema_SolidaoO diretor Tom Hooper conduz esta cena de abertura do filme filmando-a a partir da perspectiva opressiva de uma pessoa que vê um humilhante obstáculo onde a grande maioria das pessoas vê apenas palavras corriqueiras. O intenso suspense psicológico, gerado a partir de um elemento tão banal quanto o ato de falar, é algo quase Hitchcockiano. À medida que o personagem de Firth avança lentamente em direção a seu algoz, o microfone, com o ruído apreensivo da multidão ao fundo, sua leal esposa, a futura Rainha Mãe (interpretada por Helena Bonham Carter), oferece apoio incondicional, mas nessa hora não há nada que possa amenizar a extrema solidão de uma pessoa que gagueja.

A sensação de isolamento é irônica, pois tipicamente a dificuldade de comunicação para a pessoa que gagueja é tanto maior quanto maior o número de pessoas à sua volta. (A gagueira, assim como a disfonia espasmódica – outro distúrbio neurológico da fala –, tende a suavizar quando a pessoa está sozinha, falando para si mesma). Por muito tempo o distúrbio foi considerado um mistério, dando margem a especulações sobre uma possível origem psicológica. Na maioria dos casos, momentos de fala fluente se alternam intermitentemente com repetições, bloqueios e contorções da face. De forma ainda mais estranha, a fala cantada normalmente ocorre sem qualquer empecilho.

Entendimento dúbio

Essas peculiaridades deram à gagueira um entendimento meio dúbio. Enquanto outras deficiências avançavam em suas conquistas, a gagueira mal conseguia ser entendida como tal. Na maioria dos casos, pais e professores tentam tratar a gagueira apenas como uma pequena dificuldade, não como uma condição capaz de alterar completamente a vida de alguém (ainda que, dependendo da severidade, seja exatamente este o tamanho do impacto que ela pode ter). Ainda hoje prevalece a visão da gagueira como algo sem nenhuma gravidade, nenhuma desvantagem, nenhuma deficiência séria. A consequência dessa desinformação é a ausência de qualquer política inclusiva voltada à pessoa que gagueja.

Já que a maioria das crianças que experimentam episódios de bloqueios na fala não se transformam em adultos gagos, há uma suposição de que a gagueira é algo que deve obrigatoriamente ficar para trás, assim como a lancheira da escola. Quando a condição se mostra refratária à remissão, é frequentemente recebida com uma atitude cética e impaciente, como se a pessoa fosse capaz de fazer o problema desaparecer apenas porque seu interlocutor assim o deseja. Para as pessoas que não conseguem tolerar a visão de uma fala levemente fora do padrão, a reação inicial de indagação (por que este pobre garoto não fala direito?) cede lugar a uma reação de intolerância.

Zombaria e charlatanismo

O pobre Bertie foi submetido às duas maiores provações enfrentadas por quem tem gagueira: a zombaria e o charlatanismo. A zombaria partia até mesmo do próprio irmão. O charlatanismo vinha de terapeutas que tentaram aplicar com ele a técnica da boca cheia de pedras que Demóstenes praticou na Grécia Antiga, entre outras esquisitices. Como muitas pessoas que gaguejam, o método natural de Bertie para enfrentar a gagueira era a discrição, evitar situações que deixassem evidente sua dificuldade e exacerbassem sua vergonha. O refúgio seguro de uma carreira inteiramente dedicada aos livros (como fizeram, por exemplo, John Updike, Machado de Assis e José Saramago) estava fora de questão. Ao contrário desses gagos ilustres, Bertie não teve liberdade para escolher seu destino profissional, que já estava mais ou menos determinado desde o nascimento.

O drama central

O apuro de Bertie foi aumentando à medida que as expectativas em torno dele cresceram. Ambientado na década de 30, o filme mostra as mudanças políticas e sociais que obrigaram os reis a desempenhar seu papel cerimonial de forma mais regular. Fazer discursos, não apenas ao vivo e em pessoa, mas também através do rádio – a grande novidade tecnológica da época –, tornou-se uma forma de evitar a crescente obsolescência da monarquia. Enquanto a crise global se avolumava, com a Depressão de 30 desembocando na Segunda Guerra Mundial, a imagem de liderança associada à figura do rei se tornava cada vez mais cobrada. Bertie era totalmente avesso à ideia de ser rei e nem estava cotado para o cargo, mas a história se move de forma imprevisível, e a lei universal da inexorabilidade – segundo a qual o inimigo do qual mais você foge será justamente aquele que ao fim você terá de enfrentar – parece ter operado de forma implacável para o príncipe.

Depois da morte de seu pai, George V (interpretado por Michael Gambon), o irmão mais velho de Bertie, o dissoluto David (Guy Pearce), torna-se rei Eduardo VIII. Porém, ele não demonstra nenhum interesse em se submeter às exigências burocráticas da função, e sua intenção de se casar com uma atriz americana divorciada não é tolerada pela igreja anglicana. Em vez de pôr fim à relação, ele opta por abdicar do trono. E então o drama central do filme vem à tona: a gagueira de Bertie inviabilizará seu reinado e também o levará à renúncia, ainda que ele tenha direito legítimo ao trono na linha de sucessão e possua caráter e educação compatíveis com os desafios do cargo?

Gagueira deixou de ser mistério - precisa agora deixar de ser piada

Poucos imaginavam que chegaria o dia em que a gagueira seria assunto de um filme sério e de grande repercussão. Afinal, o distúrbio foi transformado em motivo de piada na cultura popular. A piada foi passada adiante e revigorada geração após geração, auxiliada por personagens caricatos e estereotipados em filmes como “Um Peixe Chamado Wanda” e “Meu Primo Vinny”. Hoje, a associação entre gagueira e humor está tão entranhada no inconsciente coletivo que, quando uma pessoa que gagueja mostra sua deficiência em público, o impulso inicial da maioria dos espectadores é esboçar uma risadinha, como se a pessoa que gagueja fosse um involuntário comediante em tempo integral, fazendo o tempo todo exibições gratuitas de standup comedy.

A incompreensão social também se reflete no entendimento que as pessoas que gaguejam têm de si mesmas. Para muitas delas, não é fácil admitir que o mau funcionamento de sua fala não se deve meramente a questões emocionais, nervosismo, ansiedade ou conflitos internos mal resolvidos. Algumas perdem vários anos de sua vida tentando solucionar o mistério e sonhando em conseguir a tão almejada cura por meio da resolução dos supostos entraves psicológicos.

Mas a ciência da gagueira tem evoluído bastante nos últimos anos, oferecendo uma compreensão bem mais sofisticada do distúrbio do que era possível na época de Bertie. Hoje já são conhecidas 10 mutações genéticas associadas à gagueira, localizadas em quatro genes diferentes (GNPTAB, GNPTG, NAGPA e CNTNAP2). Já foram também descritas particularidades no funcionamento e na estrutura do cérebro de pessoas que gaguejam que sequer eram concebidas naquele tempo, como alterações na conectividade da matéria branca e falhas na ativação em regiões do córtex e dos núcleos da base. Todas estas descobertas só se tornaram possíveis mediante o uso de tecnologias disponibilizadas apenas no final do século XX e início do século XXI (PET scan, fMRI, ressonância por tensor de difusão e hibridização genômica comparativa).

O abismo do silêncio

Felizmente, as alterações neurológicas descobertas na gagueira não implicam necessariamente uma perda total da fluência da fala. Elas implicam uma perda de eficiência na manutenção da fluência, o que é bem diferente. Mas isso contraria profundamente a convicção de pessoas de raciocínio binário, para as quais um defeito neurológico só existe quando ele priva por completo a pessoa de determinada função. No entanto, a gagueira subverte essa lógica. Para a pessoa que gagueja, embora haja um defeito neurológico subjacente à sua dificuldade, a fluência ainda é acessível, só que sem a mesma facilidade e regularidade com que é obtida por alguém que não possui a condição.

Ou seja, para a pessoa que gagueja, mesmo quando ela está falando de forma fluente, a consciência de que o mecanismo inteiro da fala pode entrar em colapso a qualquer momento está o tempo todo presente. Falar – para quem tem gagueira – é como patinar sobre uma camada muito fina de gelo, que a qualquer momento pode se partir. E o medo de que ela se parta não é apenas ilusório. Frequentemente o gelo se abre e a pessoa que gagueja precisa, de alguma forma, encontrar um jeito de não ficar presa no abismo do silêncio.

Por sua característica de ser naturalmente intermitente, o impulso imediato das pessoas, ao ver um distúrbio como a gagueira, é classificá-lo como psicológico. Porém, a realidade é que ela se compõe simultaneamente de dois lados, com o fator físico ou neurológico tendo precedência sobre as implicações psicológicas do distúrbio. Mas a grande maioria das pessoas sempre prefere que as coisas se encaixem em esquemas simples e maniqueístas e sente dificuldade em conciliar lados aparentemente contraditórios de uma mesma questão.

No filme, há um momento em que a história parece marchar numa direção simplista, quando a infância de Bertie começa a ser rememorada sob a batuta de Lionel Logue (o terapeuta que o ajuda a redescobrir sua capacidade de comunicação), e tem-se a ligeira e falsa impressão de que tudo se resume a corrigir as supostas fraquezas psicológicas do rei. Mas o roteiro de David Seidler recusa o lugar-comum e evita a fórmula fácil em favor de uma visão mais verdadeira, porém não menos inspiradora.

Lembranças dolorosas

O roteiro começou a ser escrito ainda na década de 70. Enquanto desenvolvia o projeto, Seidler localizou o último filho vivo de Lionel Logue, Valentine, e ficou muito entusiasmado ao descobrir que ele havia guardado todos os cadernos de anotações do pai, detalhando seu convívio com a família real e as técnicas terapêuticas que ele havia adotado com o rei. Valentine concordou em emprestar o material a Seidler, mas com uma pequena condição: antes de usá-lo no roteiro, Seidler deveria pedir permissão à rainha mãe (a esposa do rei George VI).

Seidler então escreveu uma carta a ela, em busca de aprovação para o projeto, e a resposta que obteve foi a seguinte: “Por favor, não faça isso enquanto eu estiver viva. As lembranças desses episódios ainda são muito dolorosas”. Seidler concordou sem objetar, pois a rainha mãe já estava com mais de 70 anos à época. Muito provavelmente, sua espera seria breve. O que ele não imaginava era que teria de esperar quase três décadas para finalizar seu projeto: a rainha mãe teve longevidade centenária e morreu apenas em 2002, com 101 anos, 28 anos depois do pedido inicial de Seidler.

Como é possível depreender das palavras da Rainha Mãe, “O Discurso do Rei”, produto final da longa espera de Seidler, é mais do que um filme sobre gagueira. Ele dramatiza de forma primorosa a dificuldade de autoaceitação, a dolorosa sensação de possuir uma vida irremediavelmente diferente daquela que se gostaria de ter. O ator Colin Firth, ao comentar a gagueira de seu personagem e a pesada carga de frustrações que ela lhe impôs, disse que o distúrbio, por conta dos calos que coloca na alma, terminou sendo decisivo para tornar o rei mais sensível aos problemas de seus súditos.

“Em seus discursos, ele estava tentando demonstrar solidariedade com milhões de pessoas que não conhecia, estava tentando se conectar ao sofrimento delas. Ele dificilmente teria acesso a esse nível de empatia se estivesse numa posição confortável. Ele estava tentando vencer uma terrível limitação. No momento em que ele, em vez de recusar a missão de ser rei, aceita sua limitação e tem a humildade de fazer o trabalho da forma como consegue, há um grande ato de coragem aí, e as pessoas se identificam com isso”, diz Firth.

Time compassivo e solidário

Mas Bertie não teria conseguido sozinho. Talvez seja essa a mais fundamental de todas as mensagens do filme. Ele contou com o apoio de um time compassivo e solidário. O time começa com sua esposa, que aceitou se casar somente na terceira proposta e foi, ela própria, uma monarca relutante, que nunca se sentiu muito confortável no cargo. Foi ela que descobriu Lionel Logue, um fonoaudiólogo australiano conhecido por seus métodos pouco convencionais – o tipo de terapeuta que membros da realeza dificilmente consultariam.

Lionel precisou ganhar a confiança de Bertie (como príncipe e depois como rei). Para fazer isso, ele teve de estabelecer uma relação de igualdade entre eles. E essa não foi uma tarefa simples, já que a confiança de um rei não é algo que se consegue obter de modo fácil ou rápido, ainda mais quando está sendo exigida a remoção da hierarquia. Este foi um teste crucial para a habilidade terapêutica de Lionel.

Sem a relação de confiança e igualdade, sem o laço de amizade que havia entre eles, a transformação de Bertie não teria sido possível. E aqui fica uma lição para médicos, fonoaudiólogos, psicólogos, fisioterapeutas, enfermeiros e cuidadores de toda espécie: Não é a autoridade que fornece os fundamentos para uma boa relação com o paciente e o sucesso em seu tratamento e recuperação, mas sim o vínculo de confiança e de igualdade que conseguimos estabelecer com ele. Sem isso, o conhecimento técnico e científico – outro elemento crucial para o sucesso de um tratamento – torna-se inaplicável.


Verdade mais inspiradora que a fantasia

George VI manteve a amizade com seu tutor e terapeuta Lionel Logue até fim de sua vida (ele morreu de câncer no pulmão em 1952; Logue morreu no ano seguinte). O rei buscava sua ajuda sempre que precisava fazer pronunciamentos públicos e, em 1937, concedeu a Logue o título de nobreza da Ordem Real Vitoriana, que reconhece serviços prestados à monarquia. Diante da história de sucesso da parceria entre os dois, muitos ficam tentados a pensar que o rei superou completamente a gagueira, muito embora a verdade seja um tanto diferente.

Sobre esse fato, o diretor Tom Hopper comenta: “Teria sido um erro dar ao filme um final clássico de Hollywood, em que ele fica curado e a vida se torna alegre a partir de então”. Quando Hooper foi atrás dos arquivos do rei e ouviu os registros de seus discursos, ficou claro para ele que “a gagueira ainda estava ali, ele ainda estava o tempo todo lutando com ela e não se tratava de um homem que havia sido curado. O que vi foi um homem que tinha aprendido a lidar com sua dificuldade. Mostrá-lo como curado teria sido uma fantasia”.


David Seidler acrescenta: “Esta foi a maior prova da coragem de Bertie: ter aceito o desafio de ser rei mesmo sabendo que a cura era um ideal inalcançável e que a gagueira seria um adversário a acossá-lo permanentemente. Não foi à toa que Lionel Logue disse a Bertie que ele era o homem mais corajoso que ele havia conhecido na vida”. Outra grande prova da coragem de George VI, esta menos ignorada pelos historiadores, foi sua recusa em deixar a Inglaterra no auge da guerra, mesmo depois de ter recebido insistentes convites de asilo diplomático por parte dos governos americano e canadense.

Como bem demonstra a história e o exemplo do rei que gaguejava, as deficiências podem se transformar em grande fonte de força e determinação mesmo quando (ou especialmente quando) elas nos impõem a morte de idealizações e fantasias. Bertie, ao abandonar o irrealizável desejo de se tornar outra pessoa, paradoxalmente conseguiu a transformação de que tanto precisava, dando-se conta de que, embora a cura não fosse possível, era possível aprender a conviver melhor com seus limites.

Ao fim, ele percebeu que há sempre uma coisa pela qual nunca devemos deixar de agradecer: o fato de sermos nós mesmos e não outra pessoa.

Trailer legendado do filme


* Hugo Silva é pessoa que gagueja, analista financeiro e, sempre que pode, dedica um pouco de seu tempo para exercer voluntariamente a curadoria digital do Instituto Brasileiro de Fluência – organização da sociedade civil reconhecida pela OEA por seu importante trabalho na divulgação de informações a respeito dos distúrbios de fluência da fala.

Página relacionada:
Através do filme “O Discurso do Rei”, pudemos falar ao mundo